Consenso de especialistas EHRA/HRS/APHRS/LAHRS Status do teste genético para cardiomiopatias
O conhecimento sobre a base genética das doenças cardiovasculares apresentou importante avanço nas últimas décadas, com a incorporação de novas tecnologias no diagnóstico molecular, esforços de caracterização funcional, inteligência artificial e fortalecimento da associação genótipo-fenótipo. A redução do custo do sequenciamento genético permitiu amplo acesso aos testes, concretizando-o como parte importante da prática clínica na cardiologia. Após 11 anos do primeiro documento publicado por Ackerman e colaboradores, (1) houve uma atualização de conceitos e recomendações, com participação multicontinental, incluindo a Latin-American Heart Rhythm Society (LAHRS). (2)
O princípio básico para o uso do teste genético clínico é a compreensão que os genes avaliados devem ter forte evidência científica de associação com a doença (para classificação, consulte https://clinicalgenome.org/). Em 2015, o American College of Medical Genetics and Genomics (3) forneceu uma abordagem padrão baseada em critérios para a interpretação de variantes genéticas em testes clínicos. A soma das evidências leva a uma classificação da variante em uma faixa probabilística de categorias: patogênica (pathogenic, P), provavelmente patogênica (likely pathogenic, LP), variante de significado clínico incerto (variant of uncertain significance, VUS), provavelmente benigna (likely benign, LB) e benigna (benign, B). A classificação VUS representa o desafio da prática clínica atual, quando a experiência de centros especializados e multidisciplinar se faz ainda mais necessária.
O aconselhamento familiar apresenta um papel fundamental para orientação sobre o impacto clínico do teste genético para o probando e seus familiares, sendo recomendado antes e depois do diagnóstico molecular, em centros de experiência em genética cardiovascular. O resultado clinicamente acionável (presença de variantes LP/P) pode fornecer informações diagnósticas, prognósticas e terapêuticas para o probando, a depender da doença investigada (Tabela 1). O principal benefício do teste genético é a triagem familiar em cascata, ou seja, identificar com precisão familiares portadores de variantes LP/P, os quais se beneficiam de acompanhamento médico especializado e familiares não portadores, esses improváveis de desenvolver a doença. O progresso dos testes genéticos em doenças cardiovasculares hereditárias também aumentou a compreensão em doenças oligogênicas e poligênicas, através do desenvolvimento de escores poligênicos.
Tabela 1. Impacto do teste Genético para o probando |
|||
Doença |
Diagnóstico |
Prognóstico |
Terapêutica |
Síndromes arrítmicas | |||
SQTL |
+++ |
+++ |
+++ |
TVPC |
+++ |
+ |
+ |
SBr |
+ |
+ |
+ |
DPSC |
+ |
+ |
+ |
SQTC |
+ |
+ |
+ |
DNS |
– |
+ |
– |
FA |
– |
+ |
– |
Rep precoce |
– |
– |
– |
Cardiomiopatias |
|
|
|
CMH |
+++ |
++ |
++ |
CMD |
++ |
+++ |
++ |
CMA |
+++ |
++ |
++ |
MNC |
+ |
+ |
– |
CMR |
+ |
+ |
+ |
Cardiopatias Congênitas | |||
Sindrômica |
+++ |
++ |
– |
Não sindrômica |
+ |
– |
– |
Familiar |
++ |
– |
– |
SQTL: síndrome do QT longo, TVPC: taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica, SBr: síndrome de Brugada, DPSC: doença progressiva do sistema de consução, SQTC: síndrome do QT curto congênito, DNS: doença do nó sinusal, FA: fibrilação atrial, Rep precoce: repolarização precoce, CMH: cardiomiopatia hipertrófica, CMD: cardiomiopatia dilatada, CMA: cardiomiopatia arritmogênica, MNC: miocárdio não compactado, CMR: cardiomiopatia restritiva.
O consenso fornece informações específicas para cada doença organizadas em sumário da doença, genes com forte e moderada associação com o fenótipo (sugestão de qual painel solicitar), bem como implicações terapêuticas e prognósticas do teste genético para o probando e seus familiares. No aconselhamento familiar, a idade recomendada para realização do teste genético é também específica para o diagnóstico e idade de apresentação clínica familiar. Em geral, nas canalopatia, como Síndrome do QT longo (SQTL), taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica (TVPC) e Síndrome de Brugada, há indicação de fazer o teste genético desde o nascimento, pois há estratégias para a prevenção de arritmias potencialmente fatais e tratamento. Nas cardiomiopatias, por sua vez, a idade sugerida para rastreamento genético ocorre entre 10-12 anos, devido a penetrância idade-dependente, exceto se histórico familiar de fenótipo desenvolvido na infância.
A síndrome do QT longo representa a doença com melhor rendimento e utilidade do teste genético, quando a probabilidade clínica pré-teste é alta (escore de Schwartz 3,5), auxiliando na classificação dos subtipos 1 a 3, na identificação das formas sindrômicas (Jervel Langue-Nilsen, Andersen Tawil, Thimoty e Triadin knockout) e das calmodulinopatias (CALM1, CALM2 e CALM3). Na cardiomiopatia hipertrófica, a distinção da doença sarcomérica com as fenocópias, como Danon, Fabry, Amiloidose e Síndrome do PRKAG2 também pode direcionar acompanhamento médico específico e influenciar em tratamento.
Diferentemente do consenso de 2011, (1) a Fibrilação Atrial (FA), a doença progressiva do sistema de condução e a doença do nó sinusal aparecem com maior embasamento em um contexto de herança monogenético ou associadas a outras canalopatias /miocardiopatias (manifestas ou não). Outra mudança expressiva no consenso atual foi o peso do teste genético nas cardiomiopatias arritmogênicas e dilatadas, pois o diagnóstico molecular permite estratificação clínica mais precisa, com desenvolvimento de novas calculadoras de risco, contribuindo para decisões terapêuticas como a indicação de cardiodesfibrilador implantável (CDI).
O atual consenso traz ainda recomendações para teste genético em cardiopatias congênitas. Quando a doença cardíaca congênita é diagnosticada em ultrassom fetal (CHD), o exame genético do tecido fetal deve ser oferecido (microarray cromossômico ou sequenciamento de CNV), para condutas na gestação e aconselhamento genético.
É fácil compreender, portanto, que a “cardiologia genética” é um novo campo da medicina, com especialistas envolvidos na tradução de achados genéticos, refletindo em melhores cuidados clínicos. Novas lacunas surgem e antigos desafios permanecem, incluindo a classificação precisa e interpretação de variantes. A perspectiva é o desenvolvimento da terapia gênica lado a lado com a identificação precisa do substrato causador da doença, permitindo não apenas terapias guiadas por genótipos, mas também terapias específicas de genes, incluindo terapias específicas de variantes.
Link: https://lahrs.org/guias/test-genetico-en-cardiopatias/
MD, PhD, arrhythmologist focused on inherited Cardiac disease at University of Sao Paulo
Biobliografia
1. Ackerman MJ, Priori SG, Willems S, Berul C, Brugada R, Calkins H, et al. HRS/EHRA expert consensus statement on the state of genetic testing for the channelopathies and cardiomyopathies: this document was developed as a partnership between the Heart Rhythm Society (HRS) and the European Heart Rhythm Association (EHRA). Europace. 2011 Aug;13(8):1077-109. PubMed PMID: 21810866. eng.
2. Wilde AAM, Semsarian C, Márquez MF, Sepehri Shamloo A, Ackerman MJ, et al. European Heart Rhythm Association (EHRA)/Heart Rhythm Society (HRS)/Asia Pacific Heart Rhythm Society (APHRS)/Latin American Heart Rhythm Society (LAHRS) Expert Consensus Statement on the State of Genetic Testing for Cardiac Diseases. Heart Rhythm. 2022 Apr 4:S1547-5271(22)01697-6. doi: 10.1016/j.hrthm.2022.03.1225.
3. Sue R, Nazneen A, Sherri B, David B, Soma Das et al. Standards and guidelines for the interpretation of sequence variants: a joint consensus recommendation of the American College of Medical Genetics and Genomics and the Association for Molecular Pathology. Genet Med. 2015 May;17(5):405-24. doi: 10.1038/gim.2015.30. Epub 2015 Mar 5.