Fibrilação atrial (FA) e insuficiência cardíaca (IC) estão entre as doenças mais frequentes na prática diária do cardiologista, sendo comum o manejo de pacientes com ambas as condições. Uma análise da coorte de Framingham identificou que 41% dos pacientes com IC apresentaram episódios de FA durante o seguimento e 42% dos pacientes com FA apresentaram algum episódio de IC1. A concomitância dessas condições é explicada pelo fato de ambas compartilharem os mesmos fatores de risco na sua fisiopatologia e também porque as repercussões hemodinâmicas da FA favorecem o surgimento de IC, e vice-versa.
Tendo em vista a importância do tema, Deisenhofer2realizou uma revisão sobre as evidências e benefícios da ablação por cateter de FA em pacientes portadores de IC. Conforme cita a autora, após a primeira coorte prospectiva demonstrando benefício da ablação nesses pacientes, vários ensaios clínicos randomizados (ECR) foram publicados comparando a ablação com o tratamento farmacológico, com destaque para dois em relação ao tamanho do espaço amostral e à metodologia: AATAC e CASTLE.
O ECR AATAC, publicado em 2016, compara ablação por radiofrequëncia com tratamento farmacológico com amiodarona, tendo incluído 203 pacientes com FA persistente e fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) menor ou igual a 40%. Seu resultado foi positivo e com reduções importantes de risco dos desfechos avaliados, como redução absoluta de risco (RAR) de recorrência de FA em 36% (desfecho primário) e RAR de mortalidade de 10% (desfecho secundário), além de ter demonstrado melhora de FEVE, redução de hospitalizações e melhora de qualidade de vida. Já o estudo CASTLE, publicado em 2018, se destacou pelo seu tamanho amostral de 393 pacientes com FEVE menor ou igual a 35% e por ter demonstrado uma RAR de 16% para o desfecho primário “duro” combinado de morte ou hospitalização. Posteriormente, Sohns et al publicou a avaliação de dois importantes subgrupos do estudo CASTLE. O primeiro foi a divisão dos pacientes em grupos de acordo com FEVE, demonstrando haver redução do desfecho primário independente do grau de disfunção ventricular. O segundo foi com base na classe funcional, encontrando maior benefício nos pacientes com menor classe funcional, sugerindo maior impacto em ablações realizadas na fase inicial da IC. Uma outra subanálise do estudo CASTLE realizado por Brachmann et al avaliou a influência da carga de FA após a ablação, demonstrando que pacientes com carga de FA <50% apresentavam redução do desfecho primário, enquanto que aqueles com carga >50% não se beneficiavam do procedimento. Nessa subanálise, a presença de pelo menos um episódio de FA com duração maior do que 30 segundos – definição de recorrência após a ablação comumente utilizada – não influenciou no desfecho primário, o que sugere que a redução considerável da carga de FA, independentemente da recorrência paroxística após o procedimento, seja o principal fator responsável pelo benefício encontrado.
Com relação à comparação entre controle de ritmo e de frequência em pacientes com IC, dois artigos publicados posteriormente ao artigo de revisão citado aqui merecem destaque. Uma subanálise do ECR EAST-AFNET3 avaliou 750 pacientes com IC sintomática submetidos ao controle de ritmo ou ao tratamento usual e observou melhora no desfecho composto de morte cardiovascular, acidente vascular encefálico, hospitalização por IC ou síndrome coronariana aguda nos pacientes submetidos ao controle de ritmo (hazard ratio [HR] 0.74, 95% CI 0.56-0.97). Considerando que apenas 19% dos pacientes no grupo de controle de ritmo foram submetidos à ablação, esse benefício poderia ser ainda maior. No estudo subsequente RAFT-AF4, os resultados foram similares, embora tenha sido interrompido precocemente, havendo tendência de redução de mortalidade e eventos de IC nos pacientes submetidos à ablação, porém sem atingir significância estatística.
Apesar de o estudo CABANA, o maior ECR comparando ablação e tratamento farmacológico, não ter sido desenhado para avaliar especificamente pacientes com IC, ele demonstrou benefício em relação ao seu desfecho primário desses pacientes. Packer et al avaliou o subgrupo de pacientes com IC no CABANA, totalizando 778 pacientes, e encontrou uma redução relativa de risco de 36% no desfecho primário composto de morte, acidente vascular encefálico incapacitante, sangramento maior ou parada cardiorrespiratória.
Ainda que o ciclo vicioso entre IC e FA também esteja presente nos pacientes com FEVE preservada, o aumento de mortalidade parece ser mais pronunciado naqueles com FEVE reduzida. Além disso, os estudos que avaliaram o benefício da ablação em pacientes com FEVE preservada são observacionais. Com isso, embora o conjunto das evidências para esses pacientes seja menos robusto, elas apontam também para uma melhora na qualidade de vida e de classe funcional.
Várias metanálises comparando ablação e tratamento farmacológico em pacientes com FA e IC já foram publicadas, estando de acordo com os resultados benéficos em relação à mortalidade e à qualidade de vida já citados acima. No entanto, algumas análises de subgrupos sugerem que nem todos os perfis de pacientes com IC apresentam o mesmo benefício da ablação. Em pacientes em que a probabilidade de sucesso na redução da carga de FA é menor, a probabilidade de melhora na qualidade de vida com essa intervenção também diminui, como em pacientes com mais de 75 anos, com FA persistente de longa duração, diâmetros atriais esquerdos muito grandes, área de fibrose extensa no átrio esquerdo, diâmetro diastólico final do ventrículo esquerdo maior do que 53mm e pacientes como múltiplos fatores de risco para FA. Nas diretrizes sobre manejo da Insuficiência Cardíaca recentemente publicadas pela Sociedade Europeia de Cardiologia, que se baseiam principalmente no CASTLE AF e CABANA, recomenda-se a ablação por cateter como indicação classe IIa5.
Em resumo, a insuficiência cardíaca e a fibrilação atrial são duas entidades frequentemente associadas e que constituem um círculo vicioso com piora na qualidade de vida e na sobrevida desses pacientes. A ablação por cateter é uma terapêutica eficaz em pacientes com IC, com um claro benefício sobre drogas antiarrítmicas resultando em menos internações por IC, diminuição da mortalidade e maior remodelamento reverso do ventrículo esquerdo. Embora seja um tratamento eficaz, é importante identificar os candidatos ideais para se obter estes desfechos.
Referências:
1. Wang TJ, Larson MG, Levy D, Vasan RS, Leip EP, Wolf PA, et al. Temporal relations of atrial fibrillation and congestive heart failure and their joint influence on mortality: the Framingham Heart Study. Circulation. 2003;107(23):2920-5.
2. Deisenhofer I. Atrial fibrillation in heart failure: Prime time for ablation! Heart Rhythm O2. 2021;2(6Part B):754-61.
3. Rillig A, Magnussen C, Ozga AK, Suling A, Brandes A, Breithardt G, et al. Early Rhythm Control Therapy in Patients With Atrial Fibrillation and Heart Failure. Circulation. 2021;144(11):845-58.
4. Parkash R, Wells GA, Rouleau J, Talajic M, Essebag V, Skanes A, et al. Randomized Ablation-Based Rhythm-Control Versus Rate-Control Trial in Patients With Heart Failure and Atrial Fibrillation: Results from the RAFT-AF trial. Circulation. 2022;145(23):1693-704.
5. Hindricks G, Potpara T, Dagres N, Arbelo E, Bax JJ, Blomström-Lundqvist C, et al. 2020 ESC Guidelines for the diagnosis and management of atrial fibrillation developed in collaboration with the European Association for Cardio-Thoracic Surgery (EACTS): The Task Force for the diagnosis and management of atrial fibrillation of the European Society of Cardiology (ESC) Developed with the special contribution of the European Heart Rhythm Association (EHRA) of the ESC. Eur Heart J. 2021;42(5):373-498.
Dra. Carina Hardy
Electrofisiólogo egresado del Instituto do Coração HC/FMUSP
Médico Asistente de la Unidad de Arritmias del Instituto do Coração – HC/FMUSP
Miembro fundador de LAHRS
Miembro SOBRAC